Se no verão você é daqueles que madrugam para aproveitar os horários mais frescos para treinar, pode programar o despertador para mais tarde sem culpa. Isso porque pesquisadores têm revelado que treinar no calor pode contribuir – e muito – para melhorar a performance.
Já se sabe o quanto isso é importante como aclimatação para participar de uma prova nos meses mais quentes do ano, mas pesquisas da Universidade de Oregon (EUA) mostram que a estratégia traz benefícios mesmo para quem vai correr no frio. Santiago Lorenzo, responsável pela pesquisa e professor de fisiologia da universidade, falou com a SPORT LIFE por e-mail e respondeu se, afinal, correr no calor é uma boa estratégia. “Se for para melhorar a performance em uma prova quente, então a resposta é sim, e isso já foi mostrado em muitos estudos. Já se o objetivo for otimizar a performance em temperaturas frias, então a resposta é possivelmente. Nosso estudo mostrou forte evidência que a aclimatação ao calor melhora a performance em temperaturas frias. Ele foi feito em laboratório, de forma controlada, mas acredito que seja possível estendê-lo ao mundo real. Mas elevar a temperatura corporal pode aumentar os riscos de desenvolver exaustão ou insolação, então é muito importante monitorar a temperatura corporal, como foi feito no nosso estudo”, explica Lorenzo.
Na pesquisa, o pesquisador, que também já foi atleta olímpico de decatlo, selecionou 20 ciclistas experientes e os dividiu em dois grupos de treinamentos iguais – rodavam leve por duas baterias de 45 min, com 10 min de intervalo entre elas. Foram 10 sessões, com 30% de umidade relativa do ar. A única diferença é que um grupo utilizava uma sala a 13ºC (que alguns afirmam ser a temperatura ideal para performance aeróbica) e o outro a 39ºC. A surpresa se deu quando os dois grupos foram comparados e aqueles da sala quente tiveram um rendimento até 8% melhor quando testados, mesmo em sala fria.
Em geral, a aclimatação ao calor proporcionou aumento de VO2 máx., limiar de lactato, aumentou o volume plasmático no sangue e a eficiência cardíaca, enquanto o outro grupo não teve nenhum desses parâmetros fisiológicos alterado.
Termostato interno
De fato, alguns dos benefícios de treinar no calor podem ajudar durante a corrida no frio, como a melhora da função cardiovascular. “Correr gera muito calor corporal mesmo em baixa temperatura, então melhorar a termorregulação pode ser benéfico no clima mais frio (mas dependendo de quão frio está)”, diz o pesquisador.
Para Lorenzo, é quase impossível identificar a temperatura ideal de treino, que depende de fatores como umidade relativa do ar, intensidade do exercício, duração e nível de condicionamento do atleta. “O que posso dizer é que para alcançar os benefícios da aclimatação ao calor você precisa aumentar sua temperatura interna de repouso em pelo menos 1ºC por 60 min por sessão, entre 10 e 14 dias. Claro que quanto maior o aumento da temperatura, maior o risco, mas a maioria dos jovens sadios pode suportar até 39ºC de temperatura interna”, diz.
Thiago Fernando Lourenço, doutorando em Biodinâmica do Movimento Humano e pesquisador do Laboratório de Bioquímica do Exercício (Labex) da Unicamp também revela o potencial do treino no calor e explica o mecanismo de termorregulação. “Controlar a temperatura interna é muito importante para a melhora do desempenho, pois um aumento acima de níveis aceitáveis (cerca de 40°C) tem relações fortes com a fadiga. E assim como um motor, nosso corpo precisa de uma temperatura ótima para funcionar, e esse controle é feito pelo suor. Ao elevar a taxa de sudorese, também se altera a quantidade de água no sangue (volume plasmático) e o coração precisa bombear de forma mais eficiente. Esse processo adaptativo pode levar de 7 a 14 dias e melhora a capacidade de transporte de oxigênio para o músculo em até 5%. Outra adaptação é a vasodilatação cutânea: com o calor, o organismo aumenta a vascularização na pele para realizar a troca de calor com o ambiente, o que também pode explicar a melhora do desempenho dos atletas”, conta Thiago Lourenço.
Nas provas quentes
“Treinar propositadamente no calor (ou nos períodos mais quentes do dia) é uma ferramenta para ganho de desempenho que ainda carece de comprovação de seus benefícios a curto, médio e longo prazo. Teoricamente é uma estratégia que pode, sim, trazer ganhos para atletas de algumas especialidades, como em provas mais longas. Por outro lado, em provas mais técnicas como as de velocidade ela parece não ser tão interessante”, ressalta Danilo Balu, treinador formado em Esportes e em Nutrição pela USP.
O treinador Adriano Bastos, da Adriano Bastos Treinamento Esportivo, é um dos adeptos da estratégia, que utiliza principalmente para provas longas, mais exigentes. “Ao treinar em condições normais ou extremas de calor o atleta adapta seu organismo a suportar condições mais severas de fadiga, esforço e perdas de sódio e líquidos. Com isso se torna muito mais resistente e condicionado. Recomendo que as pessoas treinem em horários mais quentes quando estão se preparando para meias e maratonas em locais e horários de forte calor, como a maratona do Rio, Recife e São Paulo. Já para uma prova curta de 5 k ou 10 k o calor não chega a influenciar tanto”, afirma.
De fato, quem quer participar de uma prova “quente” não tem como escapar de suar mais nos treinos, e o treinador Décio Ribeiro, da D-Run Assessoria Esportiva sabe bem o que é isso. Ele completou a famosa Marathon des Sables, um desafio de 250 k no deserto do Saara, onde durante o dia a temperatura pode atingir mais de 50ºC e tem boas dicas. “Para provas mais extremas, treine sempre que possível nos horários mais quentes, principalmente nos longos aos fins de semana, com equipamentos obrigatórios, como mochilas. Use roupas leves e confortáveis ou compatíveis com as necessidades do local da prova. Eu, por exemplo, usei um tênis como uma polaina especial pra não entrar areia e um boné com uma bandana”, diz.
Ele também adverte para alguns cuidados. “Fique atento pra não haver desidratação. Comece com tempos menores, como 1h, depois 1h30. Isto provocará uma adaptação a tomar líquidos em temperatura ambiente”, completa.
A paulista Monica Otero foi a primeira mulher da América do Sul a completar a ultramaratona Badwater e seus 217 quilômetros pelo deserto de Mojave, na Califórnia, e também tem suas estratégias para enfrentar o calor. Como costuma participar de corridas realmente desafiadoras, tem uma rotina bastante exótica. “Espero o sol estar tinindo e saio para os longos treinos – não sem antes passar protetor solar, colocar camiseta de manga longa, luva com proteção solar e boné de aba larga. Como sou diabética, levo ainda uma pequena mochila com o medidor de glicemia, balas de glicose, bisnagas com geleia e azeitona. Como complemento faço step dentro da sauna seca. No calor toma-se muito líquido e a tendência é ficar enjoada, então para me acostumar fervo a água que coloco nos squeezes, com sachês de chá para melhorar o sabor”, conta ela, que já também já participou da corrida no Saara, onde a temperatura chegou a 55ºC.
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Cuidados e hidratação
No estudo de Lorenzo foram analisados atletas treinados, o que demonstra que as adaptações dependem do nível de condicionamento e tipo de treinamento realizado. Quanto menos preparado, mais a performance é afetada pelo calor. Um estudo acompanhou o tempo de conclusão de maratonas em relação à temperatura e mostrou que a performance em geral dos corredores de elite caia 2% (2 min a 3 min) quando a temperatura subia de 8ºC para 22ºC. Já para os atletas que finalizam a prova em 3 horas essa queda era ainda mais acentuada, de 10% (cerca de 18 min).
A umidade também é fator crucial, porque, se alta, dificulta a evaporação do suor e prejudica a refrigeração interna – e com isso a performance.
Ou seja, pegue bastante leve caso decida fazer algum tipo de treino como este. Correr na “sauna” torna impossível manter o mesmo ritmo a que está acostumado e é normal que os que os quilômetros pareçam se arrastar por mais de 1 000 m. Mas fique atento e, caso se sinta mal, volte a correr em horários de temperatura mais amena. Suar demais pode significar que esteja perdendo mais que 3% de água (2% da massa corporal), o considerado limite crítico. Sempre leve água e, em alguns casos, o nutricionista pode sugerir a ingestão de sal para reter líquido. “Apesar de considerar importante para o desenvolvimento dos atletas, creio que esta prática deva ser bem acompanhada, principalmente para verificar a desidratação. O auxílio de um profissional da nutrição é fundamental”, aponta Thiago Lourenço, do Labex.
“A hidratação correta é fundamental. O importante é o atleta já iniciar a sessão em um estado de boa hidratação, lembrando que a cor da urina não é um indicativo preciso, sendo a sensação de sede uma alternativa muito mais apurada”, aponta o treinador Balu. Para ele, enquanto o consumo de carboidrato exige um cálculo baseado no treino e individualidade do atleta, o consumo de água pode ser feito apenas com a sensação de sede. “Sentiu sede, hidrate-se. Não sentiu sede, não beba. É um enorme e ultrapassado equívoco pensar que a sede é sinal de que o corpo já está desidratado. O atleta pode e deve basear sua estratégia de hidratação apenas na sede”, diz. Para treinos no calor o treinador Ribeiro recomenda mesclar a ingestão de água, bebidas esportivas e reidrat (um composto de sais minerais) em média a cada 3 k, variando de 100 ml a 200 ml, conforme sua sede.