Nem no mais animado sonho de infância você imaginou que seria possível escalar uma rocha de mais de 10 m de altura usando apenas mãos e pernas, no melhor estilo homem-aranha. Mais: com a peculiar confiança do famoso herói das histórias em quadrinhos. Fique sabendo que isso não só é possível, como praticado por vários malucos ou corajosos, dependendo do ponto de vista, espalhados pelo planeta. Proteção? Apenas uma: a água de rio, mar ou lago que, obrigatoriamente, deve envolver o pé do rochedo.
Bem-vindo ao deep water soloing, mais conhecido como psicobloc, uma modalidade da escalada esportiva praticada sem o auxílio de cordas, cadeirinhas, mosquetões ou qualquer outro tipo de acessório comum a escaladores que desbravam rochas e montanhas. É você, a pedra e nada mais. Se cair, resta a esperança de que a água o salve. E ela salva. O único caso de morte que se tem notícia nesse esporte não foi bem durante a prática. Um escalador estava fazendo reconhecimento do paredão, descendo de rapel, quando caiu na água e morreu afogado. Ele se enroscou na corda e não conseguir vir à tona. Se bem que usar corda no psicobloc não é algo ético, mesmo para fazer o reconhecimento da rocha.
Sem dúvida, o pioneirismo de se conquistar a parede de uma rocha é um dos elementos que mais atraem os adeptos dessa modalidade. Um estudo prévio dos “points” a serem desbravados, no entanto, é regra entre esses apaixonados pelo esporte. O que prova que eles não são tão loucos quanto nos levam a crer. “Por motivo de segurança, é preciso verificar se a água tem profundidade suficiente para amortecer a queda e se não há obstáculos, como pedras e corais nas profundezas”, diz Felipe Dallorto, escalador carioca e maior divulgador do psicobloc no país. “A profundidade mínima aconselhada é de 4 m. Se a escalada ultrapassar 15 m, a água deve ter pelo menos 7 m de profundidade.”
Segundo Dallorto, as melhores rochas para se escalar são as de calcário que, além de sólidas, possuem agarras e buracos para apoio. Mas para a escalada ser psicobloc é necessário que o paredão a ser vencido tenha, no mínimo, 10 m de altura. E é por conta desse detalhe que a modalidade tem esse nome.
Doce tensão
Psico vem de psicológico. Uma alusão à tensão por estar a 10 m de altura sem nenhuma proteção. Já bloc remete a bloco ou falésia. O escalador espanhol Miquel Rieira foi quem deu esse nome ao esporte, ao traçar, nos anos 1970, a meta de escalar uma falésia de 20 m em seu país. Mas a origem da modalidade é datada dos anos 1960, quando escaladores espanhóis brincavam de subir rochedos de até 5 m em Palma de Mallorca (Espanha) pelo simples prazer de despencar no mar.
Mallorca é até hoje o principal “point” do esporte no mundo. No Brasil, ele é praticado nas Ilhas Tijucas e Arraial do Cabo (Rio de Janeiro), e nos cânions do rio São Francisco. Foi em um desses paredões de um dos mais famosos rios brasileiros, em Alagoas, que o escalador mineiro Lucas Marques subiu, em 2010, quase 30 m em 6 min durante uma competição – uma altura desbravada por poucos no psicobloc, considerando todos os praticantes ao redor do mundo. “Fui o único a alcançar o cume. Estou acostumado a escalar sem cordas, mesmo em rocha sem água. Por estar sempre no limite psicológico, escalar com água embaixo é sempre muito fácil pra mim. No caso do desafio no São Francisco, a altura e a fragilidade das agarras deixaram a aventura mais emocionante”, diz ele.
Mas o que leva alguém a aceitar e, principalmente, a curtir tão ousado desafio? “A sensação de liberdade é um dos principais atrativos de uma escalada. No psicobloc, ela ainda é maior”, responde o espanhol Eneko Pou. Ao lado do irmão Iker, ele é um dos mais conhecidos nomes da modalidade no mundo. Para o mineiro Lucas, o psicobloc funciona como terapia. “Ele me proporciona muita paz, coragem e determinação. É uma atividade que geralmente você faz sozinho. E quando estamos sozinhos, é quando mais aprendemos sobre nós mesmos”, diz.
Terapia de choque
O designer carioca Jonathas Scott pratica escalada esportiva há três anos e já experimentou o psicobloc. Detalhe: ele tem medo de altura. “Uma vez resolvi saltar de asa-delta na tentativa de curar essa fobia. Não consegui. Acabei desistindo no meio do caminho. Foi quando resolvi praticar escalada”, conta. “Ainda sinto medo, mas essa modalidade me ensinou a enfrentá-lo. Hoje consigo dominar meus nervos estando lá no alto. E o psicobloc também teve papel importante nisso tudo. O fato de parecer algo lúdico, em que cair na água é uma grande brincadeira, deixa a coisa mais leve.”
Além de exercitar a mente em vários sentidos, o exercício que a modalidade proporciona fará muito bem aos músculos. Flexibilidade, força e resistência muscular são aptidões trabalhadas exaustivamente nas escaladas. E, acredite: é tanta adrenalina jorrando nas veias que metabolismo nenhum fica imune. “Eu, que era gordinho, emagreci 20 kg depois que comecei a escalar”, diz Jonathas.
Loucura, esporte, brincadeira. Qualquer que seja a palavra que melhor defina o psicobloc, uma coisa é certa, ninguém vai praticá-lo de primeira. É preciso começar pela escalada esportiva convencional, com direito a corda, entre outros acessórios típicos do esporte. “Pessoas que têm muito medo de escalar precisam de até um ano de prática antes de experimentar o psicobloc. Já os mais habilidosos e corajosos conseguem a façanha em até dois meses”, diz Felipe Dallorto. E a melhor forma de aprender o esporte com segurança é procurar uma escola ou centro especializados. Afinal, homem-aranha só existe na ficção ou, na melhor das hipóteses, nos sonhos.
Bermuda, camiseta, sapatilha e nada mais
Liberdade também é a palavra de ordem ao vestir-se para a prática do psicobloc. Esqueça, portanto, qualquer roupa mais pesada que possa protegê-lo do contato direto com a rocha. Para que seus movimentos sejam livres e seu corpo não fique encharcado de suor, tudo que você precisa vestir é uma bermuda de tactel e uma camiseta de lycra ou suplex, usadas, por exemplo, em esportes como o ciclismo.
O único acessório diferente é a sapatilha própria para escaladas. Luvas? Nada disso. O contato dos dedos com a rocha tem quer ser direto. Para facilitar a aderência, evitando que o suor provoque “escorregões”, você deve passar carbonato de magnésio nas mãos, aquele pó branco que os ginastas utilizam para manterem-se firmes nos aparelhos. “Esse material fica em um saquinho preso na cintura do escalador”, diz Dallorto. Qualquer outra coisa que facilite sua escalada é considerada trapaça. Seria quase a mesma coisa que pegar carona em um carro durante uma maratona.
Despenque com sabedoria
O espanhol Iker Pou avisa: quando se despenca das alturas, a água pode ser tão “dura” quanto a rocha que você escala. “Antes de escalar grandes paredes, é preciso aprender como cair, posicionando o corpo de forma correta”, avisa. De fato, a água é um fator de segurança, mas não espere bater em algo mole, como um colchão inflável. Se você cai de mau jeito, pode se machucar. E como as quedas são inevitáveis nessa modalidade, melhor se preparar. Nesse sentido, há duas regras básicas. Se a profundidade da água for inferior a 6 m, é preciso evitar afundar demais. Assim, a queda deve ser feita em posição fetal: braços segurando as penas flexionadas próximas ao tronco. Se o local da queda for mais profundo, basta cair com o corpo esticado (braços próximos e elevados, pernas estendidas). A ideia é que você “fure” a água como se fosse uma agulha. Como você vai despencar várias vezes de pontos mais baixos, antes de se aventurar nas alturas, aprender a técnica de queda é uma questão de tempo.
Texto: Carlos Amoedo