A história da baiana de Porto Seguro Marineide dos Santos, a Neide, é bastante conhecida entre os corredores de São Paulo (SP). Ela criou e lidera o projeto Vida Corrida. A ONG desde 1999 dá aulas de corrida de rua no parque Santo Dias. Um oásis de Mata Atlântica no cenário cinza do Capão Redondo, na periferia sul da capital paulista.
Na prática, o projeto é mantido por doações de empresas como a Nike. Eles provêm material esportivo e ajudam a pagar os salários dos seis educadores físicos que conduzem as atividades nas quadras do parque. Além disso, chegam ao Vida Corrida cortesias para provas e kits gratuitos de organizadores de corridas. Por exemplo, a Iguana Sports, promotora dos circuitos Athenas, Venus e Run the Night. “Conhecemos a seriedade do projeto e a dedicação da Neide”, diz Eliane Verderio, sócia e CEO da Iguana Sports, justificando a colaboração de sete anos com o Vida Corrida.
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Como tudo começou
Levar esporte (além de aulas de inglês, ioga e diversas outras ações de cidadania) para crianças e adultos carentes parece algo muito básico, mas é preciso que alguém o faça. Neide, que começou a correr aos 14 anos ao substituir uma colega de escola que faltou a uma prova de revezamento, teve um empurrão do destino para iniciar o Vida Corrida.
No início, Neide treinava apenas uma vizinha, mas logo passou a orientar um grupo de 30 donas de casa. A ideia de incluir crianças no treino foi de seu filho Marcos. Sua primeira resposta foi negativa. Ela veria então, no assassinato do filho no próprio Capão Redondo, em 2000, um sinal para mudar de ideia. Daí até acolher a criançada no projeto foi um pulo.
O Vida Corrida hoje atende 200 adultos e 250 crianças, que precisam frequentar a escola e não podem ser repetentes. A reportagem da Sport Life presenciou, em duas ocasiões, mães procurando Neide para tentar inscrever seus filhos no projeto. A lista de espera, no entanto, já não comportava novos candidatos.
Os resultados positivos
Neide, que antes do Vida Corrida ganhava a vida como costureira, estava com o astral ainda mais alto que o normal nas últimas semanas. A convite, pôde assistir a diversas provas da Olimpíada e da Paralimpíada do Rio. No último evento, tinha uma razão extra para torcer. Um atleta criado no Capão Redondo e revelado pelo Vida Corrida estava participando.
Com glaucoma degenarativo, Julio Cesar Agripino dos Santos participou das finais dos 1 500 m e 5 000 m, categoria T13, para deficientes visuais. Nos 1500 m, quando liderava as duas voltas do final, foi empurrado por um rival, tropeçou e precisou apoiar-se nas mãos para não dar com a cara no chão. A (quase) queda ceifou suas chances de vitória. Na prova mais longa, não conseguiu completar por conta de uma lesão.
Embora não surjam atletas de alto rendimento todos os dias no Capão Redondo, Neide e os treinadores do Vida Corrida são sensíveis o suficiente para perceber quem tem potencial para ganhar a vida nas pistas. Outro a ter aparecido no Santo Dias foi Jonathan Santos Rocha, morador do Jardim Salete, em Taboão da Serra. Jonathan sempre sonhou conhecer o fundista brasileiro Marilson Gomes dos Santos. Hoje é orientado por Adauto Domingues, mesmo treinador do ídolo. “Tenho muita esperança de que o Jonathan participe da Olimpíada de Tóquio, em 2020”, diz Neide.
O amor pelo que faz
Ciente de seu papel de líder comunitária, Neide tem procurado desviar o foco da sua biografia. Mas é difícil. Não há um único ano que lhe sejam negadas indicações para comendas e prêmios. Seu trabalho lhe rendeu o Prêmio Claudia Mulher 2016, na categoria Trabalho Social. A primeira vencedora ligada ao esporte nas 21 edições do prêmio. Além disso, Neide e seu projeto viraram notícia na BBC Londres, tornando o Vida Corrida conhecido internacionalmente.
Seja como for, é quase impossível visitar o parque Santo Dias quando há aulas do Vida Corrida (outra aula é dada às 15 h, apenas para crianças) e não trombar com a boa baiana. Ela adora aquilo, tanto ou mais do que o próprio parque. À Sport Life ela revelou muita preocupação com o dia a dia do Santo Dias. Apesar da confiança irrestrita no atual administrador, o engenheiro ambiental Clodoaldo Cajado, também morador do bairro.
O problema é a prefeitura de São Paulo. Novamente em dificuldades para honrar os pagamentos dos servidores terceirizados de vigilância e limpeza, diminuiu o número de funcionários desses setores. Não foram poucas as vezes que Neide comandou mutirões de limpeza no Santo Dias. Não é de surpreender. Foi ela, junto com outras lideranças locais, a responsável por articular a desapropriação da área. Antes pertencente à Igreja Adventista, pressionaram para transformá-la em parque. Ajudou o fato de existir ali uma improvável mancha de Mata Atlântica. Ameaçada pela expansão do bairro e pelo sufocante déficit habitacional da região. Sem Neide, o Capão Redondo seria mais cinza. E sem o Vida Corrida, muito mais sedentário.
Texto e Pesquisa: Paulo Vieira | Edição: Victor Moura | Fotos: Marcelo Trad